Por que o mundo ocidental odeia a Rússia?

Jan 3, 2022
admin

Na sequência da sua muito aguardada reunião com o presidente russo Vladimir Putin à margem da cimeira do G20, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, para variar, fez uma declaração coerente: “Está na hora de avançar no trabalho construtivo com a Rússia.”

No entanto, apesar das alegações de interferência nas eleições presidenciais americanas, é improvável que a sugestão do Sr. Trump de forjar uma parceria “construtiva” com o inimigo da Guerra Fria encontrasse qualquer candidato no estabelecimento da política externa dos EUA de ambos os lados do corredor. Pois, apesar de ter passado mais de um quarto de século desde o colapso da antiga União Soviética, os EUA e seus aliados raramente mostraram apetite para construir uma boa relação com a Federação Russa. Eles, pelo contrário, apenas fomentaram uma maior sensação de insegurança na mente de Moscovo através da expansão do seu poder militar, ao ponto de haver armamento directo contra a Rússia.

Na sequência do 11 de Setembro, uma pergunta que o americano médio faz é: “Porque nos odeiam”. Talvez seja altura de os observadores de política externa levantarem uma questão semelhante: “Porque é que o Ocidente odeia tanto a Rússia?”

Algumas respostas são dadas por escritores e cineastas dispostos a olhar com mais empatia para a Rússia. Uma delas é Oliver Stone, cuja série em quatro partes The Putin Interviews encontrou críticas quase unânimes da mídia ocidental no mês passado.

A série oferece ao espectador médio uma oportunidade de conhecer o pensamento de um líder que se tornou o mais violentado do mundo ocidental nos últimos seis meses. Também nos dá um vislumbre da mente do russo médio. Filmado entre junho de 2015, quando Moscou começava a sentir o impacto das sanções impostas pelo Ocidente, e fevereiro de 2017, quando se intensificaram os apelos para investigar a suposta ingerência russa nas eleições presidenciais americanas, o documentário apresenta algumas linhas-chave do pensamento de Putin, que nos ajudam a ver a Rússia da perspectiva de Moscou, em comparação com a dos czares da política externa dos EUA.

O primeiro é que Putin vê a Rússia como vítima de agressão e não como perpetrador. A segunda é que a sua suposta tentativa benigna de forjar uma esfera de influência na vizinhança do país tem sido seriamente ameaçada pela expansão contínua da OTAN desde o fim da Guerra Fria. A Rússia vê isto como uma ameaça à sua própria soberania, tal como a Índia vê as actividades de construção da China ao longo da fronteira com o Butão como uma ameaça à sua própria segurança.

Putin dá uma impressão de traição e dor quando diz Mikhail Gorbachev, embora tenha obtido garantias verbais da U.S. que a OTAN não seria alargada a leste da antiga República Democrática Alemã, não insistiu numa declaração escrita.

A Rússia não é nem uma ameaça ao domínio do Ocidente nem um mal militar a bater às suas portas. É tão vítima do terror quanto os EUA, tanto uma nação em desenvolvimento que se esforça para lidar com suas questões de pão e manteiga quanto a Índia, e tanto uma cultura tão orgulhosa quanto a França.

Para colocar as coisas em perspectiva, a Rússia vê os antigos Estados Soviéticos na sua vizinhança imediata como um amortecedor entre o continente russo e a Europa Ocidental. Jack Matlock, embaixador dos EUA na União Soviética na sua última fase, é citado como tendo dito que o Ocidente deu um “claro compromisso” de que a OTAN não seria expandida mais para Leste. Contudo, desde 1999, no último ano de Boris Ieltsin, a OTAN expandiu-se quatro vezes, tendo acolhido 13 países. Estes incluem a República Checa, Hungria, Polónia, Bulgária, os Estados bálticos da Letónia, Lituânia e Estónia e outros países como a Roménia e a Croácia.

Como mostra este artigo The Independent, os Estados bálticos, a Roménia e a Bulgária estão a acolher soldados de todos os países membros da OTAN. Além disso, estão destacados pelo menos 7.000 militares em países limítrofes da Rússia. Isto constitui o maior reforço militar desde o fim da Guerra Fria, em 1991, para dissuadir a percepção de agressão russa. Moscovo sente uma ameaça à sua soberania e tem poucas opções a não ser responder. E, em um de seus raros momentos agressivos no documentário, Putin diz que a resposta da Rússia será “dura”.

Putin emerge, de qualquer forma, de seu retrato no documentário, como um pragmatista. Mas o que explica a sua popularidade contínua, bem no seu terceiro mandato? É genuíno ou forjado? O documentário retrata como Putin herdou a bagunça deixada por um regime de Ieltsin que tinha sido subserviente aos interesses do Ocidente, e trouxe uma considerável redução da pobreza, bem como o aumento do nível de vida das massas. Ele foi ajudado nisto pelo boom das mercadorias durante os seus primeiros anos, uma linha de vida que agora esgotou.

Os dados económicos oficiais mostram que a taxa de pobreza da Rússia, que era de 29% em 2000, desceu para 11% em 2012, antes de subir marginalmente para 15% em 2015. O PIB do país aumentou de US$10.462 em 2000 para US$24.448 em 2014, tornando-o um país em desenvolvimento, mas não é, de forma alguma, uma ameaça ao poder dos EUA.

Even agora, apesar da Rússia ter sido gravemente mordida pelas sanções ocidentais impostas na sequência da sua anexação da Ucrânia e dos preços do petróleo em queda livre, o establishment norte-americano continua a vê-la como uma ameaça. Os preços do petróleo bruto diminuíram de $110 por barril em fevereiro de 2012 para menos de $50 em julho de 2017. Houve uma contracção do PIB em cerca de 4% em 2015 e 2016. No entanto, as despesas militares da Rússia têm aumentado constantemente, ocupando a terceira posição atrás da China e dos EUA em termos de montantes gastos com militares, significando uma nova expansão na corrida aos armamentos.

Quando se trata das alegações de pirataria contra a Rússia, independentemente das conclusões das numerosas comissões de investigação do Congresso, o facto permanece: as tentativas de melhorar os laços diplomáticos darão poucos frutos. A razão? O fenômeno da ‘Russofobia’, ou o antagonismo inerente que prevalece na percepção do mundo ocidental sobre a Rússia.

Um estudo importante que tenta chegar às raízes das tendências de resistência à Rússia do especialista americano médio é o jornalista suíço Guy Mettan’s Creating Russophobia.

Mettan traça as raízes da aversão ao século V d.C., quando, com a queda do Império Romano Ocidental, Bizâncio tornou-se o ponto focal dos debates sobre o cristianismo, após o que surgiu a cisão Leste-Oeste entre as seitas ortodoxas e católicas. A Igreja reconheceu nessa época a autoridade do Papa Católico Romano como ‘primus inter pares’, ou o primeiro entre iguais, entre os cinco patriarcas. Uma divergência sobre se o ‘Espírito Santo’ procedia do ‘Pai’ ou ambos, o ‘Pai e o Filho’, levou a diferenças. E uma doutrina, que mais tarde provou ser falsa, fez com que esses patriarcas dessem primazia ao papado.

Numa época em que o poder religioso era equivalente ao poder político, a igreja ortodoxa russa assim não podia reivindicar tanta autoridade quanto a outra. Que o império russo, como o locus do ROC, nunca poderia reivindicar tanto poder político como o romano e outros impérios ocidentais, apenas acrescentava à sua futura denigração.

Mettan faz uma meticulosa crônica das Russofobias de diferentes culturas – a Russofobia francesa, suas versões alemã, inglesa e americana, chamando esta tendência das sociedades liberais ocidentais de ver uma ameaça comum na Rússia como um caso sistemático e contínuo.

A iteração americana do conceito tem sido um fenômeno mais recente, que tomou forma no rescaldo da Segunda Guerra Mundial. Isto foi tratado pelo próprio Oliver Stone em seu livro e série documental The Untold History of the United States.

Ele chama a Guerra Fria em grande parte um projeto por parte dos EUA para estabelecer uma nova forma de superioridade a partir das ruínas da Segunda Guerra Mundial.

No rescaldo da Segunda Guerra Mundial, o medo do comunismo e a necessidade de antecipar a ascensão dos regimes populares da ala esquerda na vizinhança da União Soviética levaram os EUA a apoiar ditadores na Europa. Apesar do monopólio dos EUA sobre a bomba atômica, algo que o presidente Harry S. Truman estava certo de que não seria ameaçado, e o isolamento soviético na ONU, Washington procurou apresentar Moscou como uma ameaça, diz o documentário. Os Estados Unidos e a União Soviética, aliados durante a guerra, tornaram-se adversários em paz. Isso foi contra a visão de seu presidente em tempo de guerra, Franklin D. Roosevelt, e de seu único adjunto, o pacifista Henry Wallace.

Um ex-poderoso PM britânico Winston Churchill, um forte anti-comunista, fez um discurso infame no Estado natal de Truman, no Missouri, em março de 1946, que é considerado como marcando o início da Guerra Fria. Ele disse: “De Stettin no Báltico até Trieste no Adriático, uma cortina de ferro desceu por todo o continente. Em um grande número de países, os partidos comunistas ou a quinta coluna constituem um grande desafio para a civilização cristã”. O teor do discurso foi tão Russofóbico quanto anticomunista. Oliver Stone diz que este único discurso condenou para sempre, a União Soviética aos olhos dos americanos.

A Doutrina Truman

Os movimentos de Josef Stalin para conceptualizar planos de cinco anos para reconstruir a economia da Rússia já tinham sido vistos entre a Direita Ocidental como uma declaração de guerra. A isto se seguiu a suspensão dos pagamentos de reparações de guerra à União Soviética, o apoio às ditaduras contra os movimentos de libertação populares na Grécia e na Turquia e a apresentação da Doutrina Truman. Pela primeira vez, os EUA se comprometeram a enviar tropas mesmo em tempo de paz, tornando-se o policial do mundo. Isto seria enfrentado com a contra-agressão soviética em países como Hungria e Tchecoslováquia na forma de instalação de regimes amigáveis e a criação de outra forma de cisma Leste-Oeste que duraria mais meio século.

Rússia, portanto, não é uma ameaça ao domínio do Ocidente nem um mal militar batendo às suas portas. É tanto uma vítima do terror como os EUA, tanto uma nação em desenvolvimento que se esforça por lidar com as suas questões de pão e manteiga como a Índia, e uma cultura tão orgulhosa como a França.

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Com o modelo soviético de planeamento centralizado e o modelo ocidental de capitalismo de mercado livre a serem criticados nos últimos tempos – a eleição de Trump representa, para muitos, o nadir deste último – o mundo precisa de uma nova ordem estabilizadora, uma que dê poder aos ‘muitos’, e não aos ‘poucos’. A formação desta nova ordem requer não a expansão de alianças militares como a OTAN e uma nova corrida aos armamentos – estas provocam uma abordagem geopolítica que deu origem à Guerra Fria – mas a forja de pactos comuns de cooperação, como o Acordo de Paris sobre o Clima. É improvável que sem a aproximação das duas grandes potências – uma tem a maior economia e a outra a maior massa terrestre – tal visão alguma vez se tornasse realidade. A última coisa que precisamos é de outra cisão Leste-Oeste que leve ao enriquecimento em massa do complexo militar-industrial-financeiro e ao empobrecimento em massa dos 99%.

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