Gambás comum (Didelphis marsupialisLinnaeus, 1758): alimento e medicina para as pessoas na Amazônia
O uso alimentar: preparação e consumo
Preparação da carne, primeiro, a pele é retirada, algo que pode ser feito de duas maneiras: colocando o animal em contato direto com o fogo ou deixando-o em água fervente para que a pele amoleça e seja facilmente removida. Quando se trata de um macho, antes do abate, deve ser submetido a castração para evitar o “pitiú”, termo local que significa “fedor”. Após a remoção do pêlo, o animal deve ser limpo, extraindo partes que não serão usadas, por exemplo, “miudagem” (vísceras). Na localidade, todos podem comer a carne sem restrições. A gordura é usada para produzir óleo medicinal, algo que é discutido abaixo.
A carne foi geralmente classificada como tendo um sabor muito bom, quando comparada com outras espécies, como gado bovino, suíno e frango. Também foi caracterizada como muito macia, é semelhante a outras carnes do mato, como paca de planície, veado e agouti comum (Dasyprocta aguti Linnaeus, 1758). Os relatórios dos entrevistados ilustram a importância da caça para a gastronomia local:
Esta carne é mais tenra que a carne de vaca. Eu acho que é como a carne de agouti comum, paca de planície, ou veado. (Antonio Dias, entrevistado em 10/12/2012).
Eu gosto muito dela. Tem um sabor diferente, é muito macio. (Osvaldo Rodrigues, entrevistado em 11/12/2012).
A carne é muito saborosa. Quando descansa, fica melhor. Quero dizer, por carne repousante, que o animal não sofreu stress. (Manoel Pereira, entrevistado em 10/12/2012)
De acordo com os entrevistados, as glândulas que produzem o líquido odorífero, 4 no total, estão localizadas perto dos 4 membros do animal envolvidos na locomoção; esta informação difere da fornecida por Roque et al. , que indicam que estas glândulas estão localizadas na região perianal do animal. Segundo os entrevistados, a remoção dessas glândulas é um desafio durante o preparo da carne, pois nem todos conhecem a localização e a forma de coletá-las. Portanto, vale a pena destacar uma questão. Se nossas entrevistas mostraram que as informações fornecidas pelos residentes sobre a localização dessas glândulas são controversas, o que as pessoas ribeirinhas removem do animal? Infelizmente, não pudemos observar como a carne do mato era tratada antes de cozinhar.
Na limpeza, podemos usar limão ou alho e vinagre, a fim de eliminar o “pitiú”. A carne pode ser assada em lenha, assada, ou frita em óleo. Outro detalhe destacado durante as entrevistas foi o fato de que o animal deve ser preparado imediatamente após o abate, com o risco de mudanças de sabor desagradáveis se demorar muito tempo para ser cozido. De fato, quando o gambá comum é caçado à noite, é preferível mantê-lo vivo até o dia seguinte. Certamente, mudanças no sabor da carne podem estar associadas a glândulas odoríferas, pois são desencadeadas como resultado do estresse ao qual o animal é submetido.
Na verdade, o estresse da caça foi relatado como um fator que influencia no sabor da carne, ou seja, um animal que é abatido sem estresse terá um sabor melhor do que aquele que foi abatido em condições estressantes. Assim, a carne “descansada”, como dizem os ribeirinhos, é mais saborosa. Comparando o sabor da carne com o de outras espécies, fomos informados de que o gambá comum tem um sabor específico, único e incomparável. Alguns entrevistados preferem comer animais que vivem na floresta do que aqueles encontrados em áreas urbanas, pois estes últimos geralmente se alimentam de lixo .
Um aspecto importante a ser mencionado com relação ao consumo de D. marsupialis está relacionado ao fato deste mamífero selvagem ser reservatório para Tripanosoma cruzi Chagas 1909, o parasita causador da doença de Chagas , o que desencadeia insuficiência cardíaca e problemas digestivos e pode levar à morte, se não for tratado. Segundo estudos realizados por Roque et al. , também em Abaetetuba, vários indivíduos de D. marsupialis capturados foram contaminados com o parasita, constituindo assim um problema de saúde pública. Um estudo apontou que, quando o animal é manipulado antes do cozimento, há risco de infecção por parasitas, especialmente se seu sangue estiver contaminado. Outros estudos, realizados tanto no Brasil como na Colômbia, apontaram que D. marsipialis também é um reservatório para o parasita Leishmania braziliensis guyanensis Viannia 1911, que causa leishmaniose, uma doença que afeta cães e seres humanos e desencadeia problemas tanto no tecido epitelial quanto nas vísceras; o parasita flagelado Tetratrichomonas didelphidis (Hegner e Ratcliffe 1927) também foi observado. Devido a essa evidência, vale a pena discutir o uso de D. marsupialis do ponto de vista da saúde pública, diante do risco da população local ser contaminada pelo consumo de carne de opossum.
Na comunidade em estudo, em geral, os entrevistados disseram que o consumo ocorre de 1 a 3 vezes por semana; se por um lado os homens são responsáveis pela caça, por outro, quando se trata de preparar a iguaria, as mulheres assumem a tarefa, demonstrando assim uma clara divisão de trabalho, uma vez que o processo envolvido no consumo de carne de caça tem de ser analisado de acordo com as suas diferentes etapas. Assim como os pais ensinam ao filho estratégias de caça, as mães, tias e avós treinam as filhas para se tornarem boas cozinheiras de carne de gambá; entretanto, alguns homens se aventuram a prepará-la, como relatado por alguns entrevistados. De fato, a observação participante, por meio da interação com as famílias, nos permitiu compreender quantas tarefas diárias são realizadas. Estas observações nos mostraram que a divisão do trabalho é flexível em certas situações, ou seja, tanto homens quanto mulheres podem realizar tarefas que tradicionalmente não são atribuídas ao seu gênero, com exceção da caça, uma tarefa exclusiva dos homens.
Uso medicinal: medicamento feito de gambá comum na Amazônia
Ao preparar a carne de gambá, a gordura, localmente conhecida como “banha”, é separada para produzir o óleo medicinal feito à mão. Este medicamento é produzido derretendo a gordura sobre um fogo até se transformar em óleo. Depois disso, adiciona-se um refresco de cheiro ao óleo, para atenuar o cheiro forte, como a cânfora, uma substância extraída da árvore da cânfora (Cinnamomum camphora L.), uma espécie da família das Lauraceae. O óleo medicinal é usado como anti-inflamatório para dores musculares, reumatismo, hematomas, asma, mas principalmente para a dor de garganta. Também é indicado para mulheres grávidas, porque, segundo os entrevistados, este óleo alivia as dores do parto. Esta indicação está associada ao fato de que os opossuns femininos, como apontado pelos ribeirinhos, não sentem dor ao dar à luz as suas crias, que completam seu desenvolvimento em uma bolsa, o marsupium. Segundo a crença local, os opossuns receberam a bênção de Nossa Senhora, a Mãe de Jesus Cristo, que um dia, ao pedir leite a uma mulher lactante, teve seu pedido negado; o opossum, por sua vez, ao ouvir tal negação, deu seu leite a Nossa Senhora e depois recebeu o dom de nunca sentir dor durante o parto. Esta é a explicação cosmológica para o marsupio e a ausência de dor entre os opossuns femininos.
Estudos realizados em outras partes da Floresta Amazônica registraram o uso do opossum para fins alimentares e medicinais. Terra e Rebêlo , no estado do Amazonas, registraram o uso de D. marsupialis bile e língua para aliviar a dor e a asma em mulheres grávidas, respectivamente. No primeiro caso, o uso é semelhante ao identificado no presente estudo, embora a substância utilizada seja diferente. Outros estudos mostram que a espécie em questão é amplamente utilizada na medicina tradicional brasileira. O uso de gordura animal para fins medicinais tem sido registrado em muitos países, como Nigéria , Índia , México , Nepal , Argentina , entre outros.
O momento mais apropriado para a aplicação do óleo é ao entardecer ou à noite, antes de ir para a cama, podendo ser usado 2 ou 3 vezes ao dia, dependendo do caso. Quando questionadas sobre a eficácia deste óleo, as pessoas nos informaram que, além de estarem seguras de sua eficácia, também acham que a fé é crucial, pois acreditar em um poder superior ajuda a alcançar um resultado bem sucedido do medicamento. Outro relato interessante foi a ideia de que “cada animal tem uma cura”, ou seja, cada espécie animal tem alguma propriedade curativa.
Esta tradição, mesmo sendo praticada em menor escala hoje em dia, é generalizada entre os residentes, e percebemos que os indivíduos mais velhos pretendem continuar a usá-la, transmitindo conhecimento aos mais jovens, também quando a medicina moderna está presente. A relativa facilidade de acesso à medicina moderna e a melhor renda possibilitada pelas políticas adotadas pelo governo brasileiro podem explicar a diminuição do seu uso. Acima de tudo, as mulheres, reconhecem que tal conhecimento foi adquirido de pessoas idosas, isso é algo aprendido “observando enquanto a mãe fazia isso”, como disse uma respondente feminina. A influência da medicina moderna sobre os problemas de saúde enfrentados pelos moradores fez com que a prática da medicina tradicional se tornasse menos freqüente na região. Isso, principalmente entre os residentes mais velhos, levantou dúvidas quanto ao uso de drogas sintéticas e à perda de conhecimentos e práticas tradicionais.
A obtenção de alguma renda
Caçar gambás na cidade é motivado principalmente pelo consumo de carne dentro da casa e também para compartilhá-la entre vizinhos e parentes, a fim de fortalecer os laços de amizade e reciprocidade . No entanto, alguns habitantes caçam o animal para fins comerciais, já que a carne desta espécie marsupial é valorizada pelas pessoas que vivem na área urbana .
De facto, as pessoas vendem esta carne na sua própria comunidade ou em áreas próximas, a pedido ou não. Na feira da cidade, que está localizada na margem esquerda do Rio Maratauíra, um entrevistado nos disse que, sempre que ele caça, mesmo sem qualquer ordem, é relativamente fácil vender o produto na feira da cidade, pois esta carne é muito procurada pelos moradores devido ao seu sabor, considerado muito bom. Um entrevistado nos explicou que quando a extração do açaí (E. oleraceae) é baixa, a caça torna-se uma importante fonte de renda. O preço de um opossum comum, que pode ser vendido vivo ou já abatido, varia de acordo com o tamanho do animal e a estação do ano. Varia de R$ 10,00 (U$D 4,50) a R$ 40,00 (U$D 18,00), quando o animal pesa cerca de 5 kg; vale ressaltar que os indivíduos vivos são mais caros. Em média, um gambá comum pesa 2 kg e custa R$ 30,00 (U$D 13,50). Como o comércio de animais silvestres é ilegal no Brasil, como prevê a Lei 9.605/1989, geralmente os caçadores vendem animais à noite, na única feira da cidade. Na zona rural, o comércio ocorre de forma ostensiva, pois não há fiscalização.
A caça ao opossum é sustentável?
A caça comum ao opossum, segundo relatos de alguns entrevistados, diminuiu quando comparada ao passado, mas ainda desempenha um papel cultural importante na vida dos atores locais. Não realizámos estudos populacionais com as espécies em questão nem medimos a percentagem de carne consumida diariamente pelos ribeirinhos, mas, tendo em conta as atitudes de alguns actores em relação à prática da caça e às mudanças nos hábitos alimentares, podemos afirmar que, aparentemente, esta actividade não causou um impacto negativo nas populações locais de D. marsupialis. No entanto, quanto ao tamanho da população animal, notamos discursos controversos entre os caçadores.
Alguns entrevistados afirmaram que há uma diminuição do número de animais, como consequência do aumento da população humana e de uma maior pressão sobre este recurso, também para o comércio; outros entrevistados argumentaram que há um aumento do número de opossuns na região. Estes últimos fundamentam a sua afirmação no aumento do número de empregos e nos melhores níveis de rendimento observados nos últimos anos, factores que reduzem a necessidade de caça. Um terceiro grupo disse que o opossum comum é uma espécie com boa capacidade reprodutiva (é um “animal mineral”), portanto, eles acham que a população se mantém estável. Dada a diversidade de discursos, percebemos que todos os relatórios devem ser considerados, já que cada membro da comunidade tem uma forma particular de lidar com o meio ambiente. Assim, existe a necessidade de realizar estudos sobre a dinâmica populacional, a fim de determinar o status demográfico desta espécie.
A preocupação dos respondentes com a sustentabilidade tornou-se clara quando relataram observar os períodos de reprodução e crescimento da espécie, afirmando evitar a caça de fêmeas com filhotes. Outro discurso interessante consiste em observar o aumento da população humana na região da planície de inundação e seu conseqüente desmatamento, o que levou os animais a fugirem dos lares. Assim, dois entrevistados relataram que os gambás chegaram uma vez à margem do rio e, hoje em dia, seus sons não são mais ouvidos. Esta informação reforça as consequências da relação entre comunidade e meio ambiente: quando privados do seu habitat, os animais afastam-se gradualmente dos lares, evitando um contacto que poderia ser prejudicial à sua sobrevivência.
Um outro relato foi muito importante para compreender a relação entre o ser humano e a natureza na comunidade em estudo. Um respondente disse: “Se você trouxer tudo o que vê, logo nada mais será visto”. Este comentário foi feito por um líder da comunidade sobre a caça predatória, o que tem sido o fator chave para explicar uma possível diminuição do número de gambás, pois ele descobriu que muitos caçadores não observam nenhuma evidência de reprodução animal e caçam tanto machos quanto fêmeas. O mesmo respondente nos disse que alguns caçadores se orgulham de caçar uma grande quantidade de animais, mesmo mais de vinte gambás por expedição de caça. Ele já encontrou gambás mortos na floresta, que talvez fossem considerados pequenos e não relevantes para o comércio. Sobre este assunto, outro membro da comunidade disse isso: “Acho que uma pessoa pode caçar para vender uma grande quantidade de animais quando precisa de fazer isso para viver, mas não concordo com o desperdício, deixando a carne do mato para trás”. Isto reforça a ideia de uma caça sustentável na comunidade: as pessoas devem evitar caçar uma grande quantidade de animais e as espécies locais podem não estar em perigo, independentemente do seu actual estado de conservação .
De acordo com um entrevistado, para além das precauções tomadas, como já relatado neste artigo, foram adquiridas orientações de instituições governamentais sobre práticas de caça sustentável, a fim de salvaguardar a reprodução de gambás e manter a sua população actual. Isso reflete o que Coelho-de-Souza et al. apontaram como o processo de gestão conjunta envolvendo atores governamentais e a sociedade civil na busca de um diálogo entre o conhecimento como ferramenta para abordar a biodiversidade e a valorização das sabedorias e práticas da comunidade local. Embora não tenhamos dados suficientes para afirmar que a atividade de caça é sustentável na região em estudo, dada a informação controversa fornecida pelos entrevistados, notamos a expressão de uma lógica ambiental particular por alguns membros da comunidade.
Considerações finais
Estudos sobre Etnobiologia e Enoecologia são de grande relevância porque registram o conhecimento das populações locais sobre o meio ambiente e os recursos naturais. Tal conhecimento é fundamental para promover o diálogo e um contato mais próximo entre pesquisadores e atores locais, estimulando processos de encontro entre as agências estatais brasileiras e os povos tradicionais que lutam por seu território e acesso aos recursos naturais. Esses processos devem fortalecer a identidade cultural dos povos, assim como melhorar a dinâmica de conservação e gestão da biodiversidade. Este estudo apontou que o opossum comum (D. marsupialis) constitui um importante recurso de caça para a população local, tanto do ponto de vista alimentar quanto medicinal. Em casos esporádicos, ele proporciona às famílias uma renda adicional. A carne desta espécie é altamente valorizada pelos moradores, o que mostra que os recursos cinegéticos desempenham um papel importante como fonte de proteína animal para as populações tradicionais da Amazônia. Certamente, a pressão sobre D. marsupialis se deve à escassez de outros tipos de carne de mato na região, como nas áreas de floresta de montanha, onde há uma diversidade mais rica de fauna de caça, as pessoas dificilmente comem gambás. Ressaltamos a importância de mais pesquisas no campo da saúde pública, pois alguns estudos apontaram os riscos à saúde humana pelo consumo de marsupiais contaminados com parasitas.